Entre aquilo que se escreve e o que é lido por outra pessoa,
existe uma intransponível distância. A linguagem comunica e abre espaço para o
equívoco que lhe é inerente. Uma mesma palavra guarda muitos significados. Já perguntava a palavra ao poeta Drummond, em “Procura da poesia”: “Tens a
chave?”.
Apesar disso, há questões instigantes que requerem o uso da
escrita.
Andei refletindo acerca de uma questão ética, no seu sentido
filosófico que é, muito resumidamente, pensar sobre algo que está instituído:
haveria possibilidade de análise sem o sigilo, e sem que o analista se proponha
a manter o compromisso ético da profissão, de não se envolver sexualmente com o
paciente, seja ele seu paciente, ou um caso clínico que está sendo por ele
supervisionado?
Podemos encontrar filmes e seriados que têm abordado o tema do
envolvimento sexual do analista com o paciente. Alguns mais recentes e brilhantes como: “Sessão de terapia”
com direção de Selton Mello, e “Um método perigoso” de David Cronernberg. Ainda hoje a possibilidade de um analista
sucumbir (ou seria melhor dizer: se aproveitar da posição de poder que ocupa?)
no fazer alienado de devolver a transferência erótica do paciente, não sob
forma de interpretação, mas na forma de abuso é tema de debate.
É curioso, se não sintomático, que com a liberdade sexual
que temos hoje, alguns profissionais optem por manter com seus pacientes uma
relação que desde os primórdios da Psicanálise é prevista e criticada por
Freud.
Freud alertava para que os psicanalistas vivessem plenamente
a sua vida sexual para que isso não interferisse no posicionamento, como
analistas, frente aos seus pacientes. Alertava para que fizessem análise e
supervisão, e que se fosse preciso, encaminhassem os seus pacientes para outros
analistas na impossibilidade de lidar com alguma questão.
Não se trata de uma questão de moralismo, mas de preservar a
integridade da experiência das pessoas que procuram análise como alternativa à
repetição que as faz sofrer.
Ora, é sabido que: se uma demanda inicial de tratamento
analítico nunca é o real motivo pelo qual o paciente precisa de ajuda para vir
a saber fazer algo com o seu sofrimento, tão pouco é pelo analista que o
paciente sente o que pensa que sente, e caberia ao analista analisar, verbo que
parece redundante na frase, mas nada melhor do que uma redundância para
reafirmar a posição que se espera de um analista frente à uma demanda de
tratamento.
Penso que um posicionamento como esse é, no mínimo,
anacrônico.
Há quem defenda publicamente que o envolvimento de Jung com
Sabina Spielrein, foi para ela a oportunidade de viver as suas fantasias
eróticas promovendo a melhora do quadro clínico da paciente. Numa época
machista como aquela, Séc. XIX, em que sabemos que o acesso da mulher às
universidades e até às bibliotecas eram restritos, poderíamos até entender a
relação de Jung com sua paciente como uma via de realização intelectual para
ela. Para termos uma idéia das circunstâncias da época: O filme “As horas” de Stephen Daldry, inspirado no livro de mesmo nome
escrito por Michael Cunningham, mostra
como Virginia Woolf foi, mais do que doente mental, vítima do seu tempo. Quem quiser, pode ler "Um teto todo seu" que é um livro em que podemos ter uma idéia do que, para alguém inteligente como Virginia Woolf, significou ser uma mulher naquela época.
Nos dias de hoje, com toda liberdade que conquistamos, fica
difícil considerar que uma relação do mesmo tipo seja benéfica para o paciente.
Tudo o que o paciente precisa é analisar a fantasia que constrói durante a
análise para lidar com esta fantasia, de modo protegido, com a ajuda do
analista. Tornar-se objeto de gozo do analista, como foi o caso de Sabina,
dificilmente abre possibilidades para que outro tipo de relação possa ser
estabelecida com outras pessoas fora na análise, lembrando que a vida acontece
fora do consultório, e uma boa análise deve proporcionar uma abertura
existencial espaço-temporal, e em termos de criatividade nas relações
interpessoais que poderão ser construídas a partir de então. Sem falar na
questão do analista, pois não sejamos ingênuos ao pensar que a repetição se dá
somente do lado do paciente: um analista que não se posiciona como tal frente a
um paciente, repete isso com vários outros, e perde a oportunidade de se
questionar acerca do seu desejo, preso que está na atuação da sua fantasia.
Para um paciente além do prejuízo emocional de ser vítima da prática abusiva,
fica a dificuldade de estabelecer uma relação analítica futura, o que pode representar prejuízo em termos da experiência que o paciente poderia ter construído, e foi
privado, pelo mal posicionamento do analista.
Há quem argumente usando a ética do desejo como mote para
atuações abusivas. Quem precisa desse tipo de argumento para fundamentar a sua
atuação com o paciente precisa rever o que entende por posição de analista.
Kátia Bizzarro. katiabizzarro@live.com